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O Projeto de Lei que redundou na edição da Lei nº 9.613/98 introduziu em nosso ordenamento jurídico o ilícito de interposição fraudulenta de terceiros. Referida norma dispõe sobre os crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos.
A definição do
delito de interposição fraudulenta no dizer do legislador, corresponde: aquele
em que alguém presta-se a intermediar negócio com recursos ou coisas que sabe
ser produto de crime antecedente.
A esse delito foi atribuída uma qualificação de crime equivalente à receptação, como se vê do item 23 da mencionada Exposição de Motivos da referida Lei:
"23. O projeto,
desta forma, mantém sob a égide do artigo 180 do Código Penal, que define o
crime de receptação, as condutas que tenham por objeto a aquisição, o
recebimento ou a ocultação, em proveito próprio ou alheio, de "coisa que sabe
ser produto de crime, ou influir para que terceiro de boa-fé, a adquira, receba
ou oculte". Fica, portanto, sob o
comando desse dispositivo a grande variedade de ilícitos parasitários de crimes
contra o patrimônio".
Do exposto, a
"interposição fraudulenta" corresponderia a um crime conexo, posto que praticado
na intenção de ocultar coisa ou dinheiro que tem como origem um dos crimes
elencados no artigo 1º da Lei nº 9.613/98, portanto pressupõe um crime
antecedente, como por exemplo: tráfico de drogas; terrorismo; contrabando ou
tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; de extorsão
mediante seqüestro; contra a administração pública (corrupção); contra o sistema
financeiro nacional; praticado por organização criminosa.
O artigo 1º, § 1º,
inciso III da Lei nº 9.613/98 dispõe que aquele que importa ou exporta bens com
valores não correspondentes aos reais pode estar praticando, nos termos dessa
lei, uma "interposição fraudulenta". Este é o teor do referido
artigo:
" § 1º - Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou
dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer
dos crimes antecedentes referidos neste artigo:
I - os converte em ativos
lícitos;
II - os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia,
guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere;
III - importa ou exporta
bens com valores não correspondentes aos
verdadeiros."
Portanto, a
condição para aplicação do artigo acima é que a interposta pessoa saiba que os
recursos financeiros empregados nas operações tem origem em um dos crimes
antecedentes tipificados no artigo 1º da referida Lei. Vale aduzir que nessa
conduta o dolo é essencial, portanto, a intenção criminal - há de restar
comprovada.
Há de
reconhecer-se que essa tipologia infracional - "interposição fraudulenta" - tipificada
no inciso III, parágrafo primeiro, do art.1º da Lei acima exige um NEXO DE
CAUSALIDADE entre a interposta pessoa e o crime antecedente. Sem essa vinculação, que há de ser
dolosa, não poderá se configurar crime algum.
Como a referida
Lei nº 9.613/98 é um instrumento com poder de coação, procurou repudiar, os
possíveis desvios de conduta. Por isso os autores da Exposição de Motivos nº
692/MJ, previnem os administrados contra a generalização, nos seguintes
termos:
24. Sem esse critério de interpretação
(referindo-se à equivalência entre a receptação e a interposição fraudulenta,
vide item 23 acima transcrito), o projeto estaria massificando a criminalização
para abranger uma infinidade de crimes como antecedentes do tipo de lavagem ou
de ocultação. Assim, o autor do
furto de pequeno valor estaria realizando um dos tipos previstos no projeto se
ocultasse o valor ou o convertesse em outro bem, como a compra de um relógio,
por exemplo."
Neste contexto,
desnecessário lembrar que face ao princípio da tipificação cerrada a que se
subsume o direito penal, inclusive penal-tributário e penal-aduaneiro, não
poderia nenhuma autoridade fiscal afastar-se do rígido trilho legal traçado pelo
próprio legislador, nos termos descritos acima.
Embora expressa
essa declaração de princípios não conseguiu o legislador seu intento, pelo menos
a julgar pela série de Autos de Infração lavrados pela RFB- Receita Federal do
Brasil, sob o pressuposto da prática de interposição fraudulenta, nela incluindo
quaisquer suspeitas sobre "subfaturamento" e outras supostas infrações.
Atualmente
referida infração está disposta no artigo 23 do Decreto-Lei nº 1.455/76,
introduzido pelo artigo 59 da Lei nº 10.637/2002 que alterou referido artigo.
Dispõe o artigo 23:
"Art. 23. Consideram-se dano ao Erário as infrações
relativas às mercadorias:
I - importadas, ao desamparo de guia de importação
ou documento de efeito equivalente, quando a sua emissão estiver vedada ou
suspensa na forma da legislação específica em vigor;
II - importadas e que
forem consideradas abandonadas pelo decurso do prazo de permanência em recintos
alfandegados nas seguintes condições:
a) 90 (noventa) dias após a descarga,
sem que tenha sido iniciado o seu despacho; ou
b) 60 (sessenta) dias da data
da interrupção do despacho por ação ou omissão do importador ou seu
representante; ou
c) 60 (sessenta) dias da data da notificação a que se
refere o artigo 56 do Decreto- Lei número 37, de 18 de novembro de 1966, nos
casos previstos no artigo 55 do mesmo Decreto-lei; ou
d) 45 (quarenta e
cinco) dias após esgotar-se o prazo fixado para permanência em entreposto
aduaneiro ou recinto alfandegado situado na zona secundária.
III - trazidas
do exterior como bagagem, acompanhada ou desacompanhada e que permanecerem nos
recintos alfandegados por prazo superior a 45 (quarenta e cinco) dias, sem que o
passageiro inicie a promoção, do seu desembaraço;
IV - enquadradas nas
hipóteses previstas nas alíneas "a" e "b" do parágrafo único do artigo 104 e nos
incisos I a XIX do artigo 105, do Decreto-lei número 37, de 18 de novembro de
1966.
V - estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na
hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de
responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a
interposição fraudulenta de terceiros."
Com efeito, o
Regulamento Aduaneiro, Decreto nº 6.759/2009, artigo 801 e as Instruções
Normativas SRF nº 206 e nº 228, ambas de 2002, vieram regulamentar referida
infração. No entanto, acabam enquadrando, quaisquer operações realizadas através
de intermediários, como "Trading Companies" numa sistemática burocrática
correndo o risco de serem alvo de ações fiscais, bastando um equívoco
documental, um erro procedimental, para que se "retenha" a mercadoria,
vislumbrando o crime de interposição fraudulenta.
Assim, começa-se o
processo administrativo pela retenção da mercadoria que se mantém até o fim do
procedimento fiscal, que poderá redundar na pena de perdimento para o importador
e multa de 10% sobre o valor da operação supostamente acobertada. O auditor
fiscal poderá interpretar que uma simples infração é um conluio, uma fraude ou
uma simulação, pelo princípio de que toda infração é objetiva, primeiro se
conclui pela conduta fraudulenta para depois se apurar seu eventual
cometimento.
Com isso
infelizmente massifica-se, generaliza-se e criminalizam-se condutas que, sob
qualquer ótica, não configuram crime de interposição fraudulenta, nos termos da
Lei de regência.
Trata-se, de um
desvio de finalidade de norma, claramente estampado no parágrafo 1º, do artigo
1º, da IN SRF nº 228/02, que acrescentou à finalidade originária (combate ao
crime de lavagem) um adendo para incluir também "os responsáveis por infração à
legislação em vigor". Dispõe referida norma:
Art. 1º As
empresas que revelarem indícios de incompatibilidade entre os volumes
transacionados no comércio exterior e a capacidade econômica e financeira
evidenciada ficarão sujeitas a procedimento especial de fiscalização, nos termos
desta Instrução Normativa.
§ 1º O procedimento especial a que se refere o
caput visa a identificar e coibir a ação fraudulenta de interpostas pessoas em
operações de comércio exterior, como meio de dificultar a verificação da origem
dos recursos aplicados, ou dos responsáveis por infração à legislação em
vigor.
(grifei)
Portanto, a INSRF
nº 228 estendeu a tipificação do crime de interposição fraudulenta originária,
descrito na Lei - do tipo cerrado - para uma tipificação aberta de tal sorte
que, a partir dessa normativa, toda e qualquer infração à legislação em vigor -
vale dizer, tudo o que nela se contém - pode vir a constituir-se, em crime
passível de justificar a pena de perdimento de bens.
Esse poder de
confiscar bens do administrado/contribuinte - presta-se, muitas vezes a
distorcer o conceito do que seja uma "importação fraudulenta", pois acaba se
incluindo no escopo da norma, ilícitos puramente fiscais suscetíveis de serem
equacionados e combatidos pela via da própria legislação ordinária.
Assim, por
exemplo, o subfaturamento ou valoração da base de cálculo do imposto de
importação, a inexatidão documental e outras tantas figuras que caracterizam
infrações aduaneiras simplesmente, acabam sendo interpretado como crime de
interposição fraudulenta, o que significa uma notória generalização e
conseqüente criminalização dessas situações. Exatamente o que legislador, a julgar
pela Exposição de Motivos nº 692/96 pretendia
evitar.
Embora isso, ao
Executivo se atribuiu a função judicante (rito do perdimento instrumentalizado
pelo Decreto-Lei nº 1.455/76) e a competência condenatória - imposição da sanção
de perdimento, por força da Medida Provisória nº 66 (artigos 59 a 60) que
redundou na edição da Lei nº 10.637/04, que mandou acrescer a interposição
fraudulenta no corpo do artigo 23 do Decreto - Lei nº 1.455/76. É possível, que
o Poder Legislativo não tenha se atentado para esse dispositivo legal com o
ditame da Lei nº 9.613/98, estabelecendo assim um conflito de competências para
julgar e apreender bens, tendo em vista que o artigo 2, inciso III da referida
norma que dispõe tal atribuição à Justiça
Federal.
No entanto,
admitindo-se a legalidade da normatização da pena de perdimento aplicada é de se
ver que sua tipificação restringe-se a penalizar com o perdimento a interposição
fraudulenta da qual resulte o emprego de recursos obtidos ilicitamente por
efeitos dos crimes antecedentes nos termos dispostos no artigo 1º, da Lei nº
6.913/98, não autorizando a aplicação dessa sanção a situações que possam
configurar "outras infrações à legislação em
vigor".
De acordo com
norma transcrita acima, confirma-se, que a interposição fraudulenta, é uma
figura delituosa, que só se define e tipifica relativamente a uma intermediação
comercial que vise ocultar, em artifício doloso, o real comprador ou real
vendedor, ou ainda o responsável pela operação, sempre que os recursos
empregados tenham origem ilícita oriunda de um crime antecedente.
Descabe, pois, nos
termos de direito, aplicar a pena de perdimento, ou reter mercadorias a pretexto
de que quaisquer outras hipotéticas infrações à legislação aduaneira pudessem
configurar a referida interposição fraudulenta. Assim, uma suspeita de subfaturamento,
por exemplo, não se sujeitaria a esse rito procedimental extremo, devendo
solucionar-se pelo Acordo de Valoração Aduaneira. Em síntese, pode-se dizer que outras
infrações, se ocorridas, terão que ser solucionadas pela via dos procedimentos
já previstos em lei.
Vale transcrever o
artigo 33 da Lei nº 11.488/2007, "verbis":
" Art.33. A
pessoa jurídica que ceder seu nome, inclusive mediante a disponibilização de
documentos próprios, para a realização de operações de comércio exterior de
terceiros com vistas no acobertamento de seus reais intervenientes ou
beneficiários fica sujeita a multa de 10% (dez por cento) do valor da operação
acobertada, não podendo ser inferior a R$ 5.000,00 (cinco mil
reais).
Parágrafo
único. À hipótese prevista no caput deste artigo não se aplica o disposto no
art. 81 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996."
Do artigo acima
transcrito, conclui-se que há duas penalidades prevista na norma, a pena de
perdimento prevista no Decreto - Lei
nº 1.455 e a multa de 10%, prevista na Lei nº
11.488/2007.
Portanto, nos
casos expressamente previstos no artigo 33 acima transcrito, qual seja,
ocultação de terceiros para realização de operações de comércio exterior,
imperioso é a aplicação da referida norma com penalidade ali prevista que é de
multa de 10% sobre o valor da operação e não de perdimento de
mercadorias.
Neste sentido é o
Acórdão do STJ - Recurso Especial 1.144.751 da Fazenda Nacional - DF
(2009/0113764-9) - DJE 15/03/2011:
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO AO ART. 535, II, DO CPC. NÃO
OCORRÊNCIA. DECLARAÇÃO DE INAPTIDÃO DO CADASTRO DO CNPJ DE EMPRESA. AUSÊNCIA DE
COMPROVAÇÃO DA ORIGEM DE RECURSOS UTILIZADOS EM OPERAÇÃO DE COMÉRCIO EXTERIOR.
INTERPOSIÇÃO FRAUDULENTA (ART. 23, § 2º, DO DL N. 1.455/76 C/C 81, § 2º, DA LEI
N. 9.430/96) X CESSÃO DE NOME PARA A REALIZAÇÃO DE OPERAÇÃO DE COMÉRCIO DE
TERCEIROS (ART.33 DA LEI N. 11.488/07). VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES E FUNDADO
RECEIO DE DANO IRREPARÁVEL OU DE DIFÍCIL REPARAÇÃO. AFERIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE NA
HIPÓTESE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 7 DESTA CORTE.
1. O presente recurso
especial originou-se de agravo de instrumento interposto em face de decisão do
juiz a quo que indeferiu o pedido de tutela antecipada formulado pela empresa em
autos de ação ordinária no sentido de determinar o retorno do seu CNPJ à
condição de ATIVO.
2. Cumpre afastar a alegada ofensa ao art. 535, II, do
CPC, visto que o Tribunal de origem se manifestou de forma clara e fundamentada
sobre a questão posta à sua apreciação, ainda que a conclusão adotada tenha sido
contrária à pretensão da ora recorrente. A Corte a quo consignou expressamente
que a defesa formulada administrativamente pela empresa foi analisada pelo
Fisco, porém, as alegações não foram suficientes para impossibilitar a
procedência da representação fiscal e a conseqüente suspensão da inscrição do
CNPJ da empresa.
3. O Tribunal de origem concluiu que a ausência de
comprovação da origem dos recursos utilizados em operação de comércio exterior -
que foi tipificada pelo Fisco como sendo infração de interposição fraudulenta,
na forma do art. 23, § 2º, da DL n. 1.455/76 - se equipara à hipótese prevista
no art. 33 da Lei n. 11.488/07 que trata da cessão do nome da empresa para a
realização de operação de comércio de terceiros com vistas ao acobertamento de
seus reais intervenientes ou beneficiários. Segundo o parágrafo único do
referido dispositivo, tal infração não é daquelas que permitem a declaração de
inaptidão do cadastro no CNPJ prevista no art. 81 da Lei n. 9.430/96.
4. A
decisão da Corte a quo apenas deferiu a antecipação de tutela pleiteada, haja
vista a verossimilhança das alegações da agravante e o receio de dano
irreparável ou de difícil reparação, eis que, conforme consta do relatório do
decisum, havia 432,40 toneladas de arroz para exportação paralisadas no Porto de
Rio Grande em razão da inaptidão do CNPJ da empresa, impossibilitando o
adimplemento de obrigações contratuais assumidas pela ela e exposto o produto ao
risco de deteriorar-se. À vista de tal contexto, não é possível a esta Corte
infirmar a conclusão adotada no acórdão recorrido, seja porque o conceito de
"interposição fraudulenta" trazido pela recorrente nas razões recursais é muito
similar ao disposto no art. 33 da Lei n. 11.488/07, o que recomenda o
deferimento da tutela de urgência pleiteada pela empresa a fim de reativar seu
CNPJ até a decisão de mérito na ação ordinária, seja porque o desenvolvimento
dos requisitos do art. 273 do CPC, para fins de concessão de tutela antecipada,
é providência que encontra óbice no teor da Súmula n. 7 desta Corte.
5.
Recurso especial não provido.
Diante de todo o exposto, entendemos que a pena de perdimento aplicada aos casos de interposição fraudulenta só exsurge no mundo jurídico quando praticada ao fito de ocultar dinheiro ilícito, fruto de crime antecedente, nos termos do artigo 1 da Lei nº 9.613/1998. Nesta hipótese ocorrendo o processo administrativo, rito previsto na INSRF nº 228 para inaptidão do CNPJ. Sua invocação, nos demais casos, só se justifica pelo arbítrio.
Elaborado por:
Angela Sartori - Advogada. Consultora na área de comércio exterior
E-mail: angelasartori@uol.com.br
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